sábado, 27 de fevereiro de 2010

O dia que eu decidi sair de casa

O telefone acabara de tocar. Não sabia do que se tratava, mas a sua expressão não era das melhores. Por menos de um minuto, ela fixou os olhos no centro da mesa da cozinha de casa, talvez para pensar na melhor resposta que daria a mim, mudo e desconfiado ao seu lado. Pelo tom da conversa que ouvira há poucos segundos, meus planos, minuciosamente detalhados na cabeça, começaram a ser substituídos por previsões nada otimistas. A cada pequeno gesto dela, minha angústia aumentava. Mesmo sem ter idéia do que estava por vir, meus anseios já não faziam tanto sentido. Minha mãe, que costuma transparecer a exatidão de seu ofício nas faces, enfim, titubeou ao sigilo interrogativo que expelia do outro lado da mesa.

- Você não vai sair de casa

Simples e direta. Aquela mulher doce que conhecia dentro de casa tornara-se subitamente a professora que, por sorte, só julgava através dos testemunhos dos colegas. O que dizer diante de afirmação tão contundente? O que alegar diante da inevitável questão financeira? A quem culpar por não ter nascido rico e com o destino traçado desde os primeiros dias de vida? Inicialmente não disse nada. Temia que qualquer palavra mal dita (e, por que não, maldita) dificultasse ainda mais as coisas. Tentava amenizar as conseqüências futuras do que ela acabara de dizer pensando em assuntos corriqueiros. A minha autodefesa era imaginar que a vida seguiria normalmente saindo ou não de casa, e que o meu sonho de liberdade poderia encontrar novas formas de ser colocado em prática. Afinal, mesmo sem me dar conta, tudo ainda era extremamente fugaz, despretensioso, como se bastasse eu virar as costas para a vida anterior e tudo estaria resolvido. Mas, à época, eu realmente acreditava que não pensar em nada era o melhor remédio para resolver o problema.

Minha culpa

Ao ver, no entanto, que o fato abalou até a racionalidade imutável de minha mãe, a ficha começou a cair. Embora imaturo em muitos aspectos, consegui por um instante compreender aquele incômodo silêncio: não era eu quem precisava de conforto. E dizer alguma coisa não aliviaria em nada o peso de ser mãe de dois filhos, separada, com mísero salário de professora de escola pública e ainda ter de justificar as próprias dificuldades para não se sentir culpada. A minha angústia parecia desencadear as suas próprias dificuldades. Outra hipótese é que, diante da situação, ela tenha posto em xeque o próprio passado, sobretudo no que diz respeito às oportunidades que ela perdeu porque seus pais não tinham condições de bancar.

Aos poucos, me deparei com uma das situações mais comuns em família: o conflito de trajetórias entre pais e filhos. E foi justamente esta comparação de caminhos que determinou a minha compreensão sobre o assunto. Quando passamos a contrariar o que os pais projetaram para as nossas vidas, a situação encontra o seu clímax. Nas entrelinhas, os filhos não podem sonhar aquilo que os pais não sonharam. Ou, de forma ainda mais clara, os filhos só devem sonhar aquilo que os pais querem que eles sonhem. Diante dessa encruzilhada, certamente chegará o momento em que deveremos optar: ou seguimos adiante nesse contrato fingindo que está tudo bem ou rasgamos o protocolo da boa conduta para assumir de vez as nossas vontades e, conseqüentemente, responsabilidades...

Por sorte, a emoção venceu a razão. Embora temesse as conseqüências, ela sabia que seria pior renegar meus anseios. Na verdade, nós dois sabíamos e sentíamos isso mutuamente à mesa. Antes que ela pudesse se retratar diante do peso daquela negativa que introduziu o diálogo, comecei a reagir instintivamente contra a razão inquestionável à minha frente. Afinal, eu pensava, minha vontade não era apenas seguir o destino que, a contragosto de muitos, eu havia escolhido. Estava mais preocupado em tomar posse de meu futuro, até então restrito ao olhar materno, e externar todos os meus desejos escondidos. O que mais queria, sinceramente, era sair de casa para encontrar o que achava ser intrínseco à minha personalidade. Sem arrependimento, admito que àquela altura a vida ao lado da família não fazia nenhum sentido.



Em busca de si mesmo


No entanto, ainda não conseguia entender porque o “sair de casa” me causara furor até acima do normal. E foi nessa busca de respostas que acabei por voltar um pouco mais no tempo. Tenho muitos amigos que se rebelaram sobre o mesmo teto que os pais, outros que ainda se sentem satisfeitos com o habitué ao lado da família, e ainda os que têm pais que simplesmente pensam da mesma maneira que eles. A minha “revolução” talvez tenha sido a mais convencional de todas.

Ainda nos tempos da pacata rotina conchense eu já dava demonstrações do que queria para o meu futuro. Mas minhas idéias ainda fervilhavam às escondidas, com receio de serem expostas. E cada nova experiência tinha o sabor de uma transgressão imperdoável, mesmo que elas significassem “apenas” uns tragos de um cigarro qualquer no banheiro ou uns copos furtados daquela bebida escondido no armário. O fato de ainda não ter um emprego digno, simbolicamente, transformara-se em espécie de camisa de força: recusava-me a crescer sem a “autorização” da família. Mesmo que eu emitisse sinais de libertação - talvez mais por rebeldia do que por convicção - temia contrariar a cartilha matemática na qual aprendera a viver.

Sair de casa significaria necessariamente obter a tão almejada independência ?

Sonho versus vida real

Foi naquele dia, na mesa da cozinha, que a ficha caiu: meu projeto só sairia do papel com o aval da minha mãe.

- Você não vai sair de casa.

A frase me soou como afronta.

- Como assim, não vou? – falei.

Esse orgulho infantil ainda quase me faz pôr tudo a perder. Quis provar que, se tudo não seguisse como eu havia planejado, a culpa seria exclusivamente de minha mãe. Eu tinha os planos; ela deveria apenas patrociná-los.

- Tudo bem... Então ficarei aqui fazendo bico e me virando como der.

Quando lembro a frieza e o desdém com que eu disse esta frase, fico ainda mais convencido de que nenhuma mãe deve ter a obrigação de bancar a vontade dos filhos, custe o que custar. As lembranças que ainda tenho daquele dia, mesmo que não sejam exatamente como tudo se sucedeu, acabou por determinar grande parte do respeito que passei a ter pela minha mãe. A mistura de vergonha e arrependimento alimenta a mea-culpa que pretendo carregar pelo resto de minha vida. Não sei qual é a avaliação que ela fez de minha atitude, mas não aparentava ter ficado com qualquer tipo de mágoa. É claro naquele momento o instinto materno deve ter suprimido a sua extrema racionalidade.

compreensão.

O ensaio pessoal

Despido de aspas, me vi diante de um espelho: refletir sobre o que penso de mim não é necessariamente a imagem que transmito aos outros. Em tese, parece óbvio. Mas é inegável que diante de uma auto-reflexão acabamos por desvendar lados até então intocados de nossa personalidade. Depois de ler e reler este texto, cheguei à conclusão de que tenho muitas outras qualidades e defeitos além dos que os outros costumam atribuir a mim. Aliás, nem eu mesmo tinha me dado conta de que, ao levar a fundo um pequeno gesto, eu poderia estar sendo mesquinho, infantil e sarcástico.

Para os outros, sou o quero ser ou digo que sou. Por isso, qualquer história que conte terá sempre o peso e a medida que lhe quero dar. Nada surpreendente, diga-se. O fato é que, neste trabalho, vou ao encontro de algo que estava adormecido: começar a entender como a minha obsessão por sair da casa de meus pais me colocou diante de inúmeros conflitos. O que narro aqui não são “correções do passado” (pelo menos, esta não foi a minha intenção original). Quis relembrar, refletir e localizar como essa ânsia em me ver livre de casa influenciou a minha personalidade.


Basicamente, toda a discussão girou em torno do seguinte tema: viver longe dos pais (no meu caso, somente a mãe) é a primeira etapa rumo à maturidade. Mas isso não se resume à distância em que você passa a viver da sua ex-casa. Assumir a si mesmo requer muito mais do que meros quilômetros.


Logo abaixo as minhas supostas companheiras de "Vida independente"

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